domingo, 4 de outubro de 2009

Uma pedra no meio do caminho: O Acordo Ortográfico


Uma epopeia pelas mudanças nos usos do hífen promovidas pelo Acordo Ortográfico


Penetremos surdamente no reino das palavras, onde, caro leitor, elas permanecem inertes, mas frescas e interrogativas, em estado dicionário. Entre elas, palmilhando-as bem, procuremos, para começar esta conversa, o que diz o verbete acordo. Do Aurélio extraio "concordância de sentimentos e ideias, concórdia, harmonia, conformidade, combinação, ajuste, pacto"; e, no Houaiss, pesco, entre outras coisas, "ajuste entre partes, combinação, consenso, conciliação, discrição, prudência, tino". Se, aqui pelo menos, eu puder reduzir esse conjunto de sinônimos da palavra acordo a três bons significados, fico com "pacto", "consenso" e "tino".


CONFUSÃO E POUCA REFLEXÃO
Entre nós há muito não desfilavam, a não ser na arena política, tanta confusão e tão pouca reflexão, coisa de dar inveja ao Brás Cubas, aquele que trazia um trapézio no cérebro. Em primeiro lugar, por que o acordo? Isso traz alguma vantagem à língua escrita trocada entre as nações que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa? Alguém já ouviu dizer que, sem esse acordo, governantes e diplomatas teriam amplos problemas de comunicação, se é que já tiveram algum em especial por causa disso? Por causa de um acento ou de um trema?

Ora, a língua é mais do que mera ortografia; e, por isso, dada a menor importância desse capítulo da gramática, é muito ruim, injusto e desgastante ficar discutindo se aquele termo tem hífen ou não. Parece perda de tempo. Pior do que ir a Lisboa, ler no cardápio do botequim da esquina "bica" e "sopa de gambas" e não saber o que significam tais palavras. Perguntando ao garçom - em português, claro -, fica-se sabendo que o primeiro substantivo corresponde ao nosso "café pequeno" e o segundo, numa melhor tradução, é "sopa de camarões".

Já que não há mais jeito e a reforma foi mesmo implantada, não quero chorar pelo leite derramado. Como professor do curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas, dirigi-me à direção da Faculdade, que está montando um site, e ofereci-me para fazer uma sistematização apenas do uso do hífen, já que os acentos não suscitam dúvidas Reprodução


Mas, já que não há mais jeito e a reforma foi mesmo implantada, não quero chorar pelo leite derramado. Como professor do curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas, dirigi-me à direção da Faculdade, que está montando um site, e ofereci-me para fazer uma sistematização apenas do uso do hífen, já que os acentos não suscitam dúvidas. O emprego do hífen, sim, é um deus nos acuda. Aceitaram e acharam até bom que alguém com muita paciência, quase beneditina, decidisse enfrentar a missão de pôr os pingos nos is (se é que isso é possível).

Gastei um mês e meio quase de luta com as palavras, luta vã nesse caso, porque, como disse o outro, elas são muitas e eu, pouco. Primeiro passo da metodologia de que me servi: busquei o que tem sido publicado na imprensa, desde o ano passado, sobre a reforma ortográfica - consultei jornais, revistas de todo tipo, especializadas ou não, assim como folhetos divulgados pelas editoras. Ao lado desse amontoado, estão os livros recém-saídos do forno trazendo novidades, mas, como era de esperar, com muitos enganos, distorções e contradições flagrantes.

E a culpa desse estado de coisas não pode ser atribuída propriamente aos autores dos livros, a não ser pela pressa que têm em publicar, para, enfim, cooptar o mercado efervescente e ávido de conhecimento. Deve, sim, ser imputada à própria Academia Brasileira de Letras, que gerou tanta desconversa e desencontro. Isso porque, em um dia, eles dizem que "re-escrita", por exemplo, deve ter hífen, como todo derivado cujas vogais, uma no final do prefixo e outra no início do radical, são idênticas (é o caso de "anti-inflamatório" e "micro-organismo"); e, em outro momento, vem a ABL dizer que as palavras que trazem o prefixo "re-" não se enquadram nessa regra e, portanto, não são hifenizadas, marcadas pela tradição que as obriga a ficar como sempre foram ("reempossado", "reeleito", "reerguer"). O mesmo se daria com o prefixo "co-", a ponto de o antigo "co-herdeiro" virar um monstrengo como "coerdeiro", exigindo do leitor certo esforço para entender de imediato o que lê ("Como, co o quê? Cordeiro, coerdeiro?").

Pois bem. Elaborei o documento sobre o uso do hífen em quatorze páginas de computador. A cada vez que eu julgava tê-lo concluído, enviando-o em seguida, por e-mail, à direção da Faculdade de Letras, apareciam-me pela frente mais novidades, que eu tinha de incluir e ajustar, corrigindo incansavelmente a edição anterior, em erratas sucessivas.

Retirada da revista discutindo Literatura.
Matéria feita por: por Roberto Sarmento Lima

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